Por que o argumento do vegetarianismo biológico, além de frágil, é irrelevante para a causa animal



Há anos é usado um controverso argumento contra o consumo de alimentos de origem animal, principalmente de carne. Alega-se que o vegetarianismo teria base num suposto herbivorismo biológico humano, tendo essa teoria conhecidamente usada na famosa palestra de 2010 do ativista Gary Yourofsky. Mas é razoável, para não dizer fortemente importante, perceber que essa argumentação não só é frágil, como é irrelevante para a defesa do veganismo como prática ética.

O “argumento biológico” ou AB – como este artigo o denomina – reza que o ser humano seria naturalmente herbívoro – ou mesmo frugívoro – e averso ao consumo de carne, tanto em anatomia e fisiologia como em comportamentos instintivos. Os órgãos e funcionamento do sistema digestivo, a dentição, o não condicionamento à predação sem armas e outras características fariam do ser humano um animal desprovido da capacidade biológica de ingerir e digerir carnes. Seria assim muito mais próximo dos animais herbívoros e frugívoros do que dos carnívoros e onívoros.

Mas respostas (não carnistas) contundentes, como o vídeo do biólogo vlogueiro Pirula, acusam essa teoria de incorrer em erros. Mostram que o organismo humano tem sim capacidade de digerir quantidades moderadas de carnes, graças a características como a enzima pepsina, o ácido clorídrico contido no estômago, os intestinos não tão longos quanto os dos herbívoros nem tão curtos quanto os dos carnívoros, a carência de bactérias decompositoras de celulose no tubo digestório – o que obriga os humanos a obter energia de alimentos que não sejam folhas e ervas – e a capacidade de, através do uso de armas – mesmo rudimentares – e da inteligência estratégica, compensar a ausência de uma anatomia forte e veloz o bastante para poder perseguir e matar animais-presa corpulentos com o próprio corpo. Concluem que somos biologicamente onívoros, mesmo sem obrigação de consumir produtos animais.

Além disso, o argumento falha em questionar a existência de milhares de sociedades que, milênios ou séculos antes do advento do veganismo e do vegetarianismo estrito, dependiam da pecuária, da pesca e/ou da caça e, até onde se sabe, não tiveram endemias de transtornos alimentares ligados a essa imaginada intolerância biológica às carnes (não confundir com doenças devidas ao consumo de carnes contaminadas com micro-organismos e/ou vermes patogênicos).

A mesma falha é percebida quando notamos que o AB não consegue argumentar por que bilhões de seres humanos são saudáveis mesmo comendo, por exemplo, uma porção de carne por dia e não estão doentes por conta de intolerância fisiológica a esse tipo de alimento. Encontra seus limites na ausência de estudos científicos confiáveis que apontem para uma endemia global de doenças devidas a alguma inadaptabilidade física à ingestão moderada de carne parecida, por exemplo, com a intolerância à lactose. Alega preconceituosamente que “não existem humanos comedores de carne saudáveis”.

Verificamos que o ser humano não tem impedimentos biológicos para o consumo de carnes – mesmo cruas em algumas situações. Isso não significa, porém, que humanos sejam incapazes de se libertar do consumo de alimentos de origem animal. Nem aponta para uma inofensividade ética, para os animais não humanos, na produção, comercialização e ingestão desses produtos.

Nesse sentido, o AB distorce aquela que é a verdadeira informação defensora do consumo ético. Transforma a alegação de que podemos viver saudavelmente sem produtos animais e que não é ético consumi-los na crença de que o ser humano “não pode” ingeri-los por motivos que dizem respeito menos à questão ética do que a uma suposta natureza orgânica inescapável.

A essa falseabilidade e distorção, soma-se a ausência de consequências positivas significativas para a conscientização ética das pessoas. O AB comete o mesmo vício dos que defendem que a “dieta vegana” é boa por ser saudável e favorável à “boa forma”: o desvio do tema da conscientização. Foge da abordagem ética e cai no apelo ao benefício individual de um hábito de consumo ético, ou no apelo ao medo da doença.

Uma pessoa que adere ao vegetarianismo por saúde ou “razões biológicas” não o fez por preocupação pelos animais, mas sim ou pela busca de uma vida individual saudável, ou por medo de contrair câncer, doenças cardiovasculares e outras enfermidades. Não é tão bem informada sobre os Direitos Animais quanto alguém que aboliu os alimentos animais de suas refeições por consciência ética.

Como aderiu ao vegetarianismo mais por causa do AB do que pelo respeito aos seres sencientes, ela tem chances elevadas de voltar a ingerir produtos animais caso descubra uma refutação suficientemente confiável que conteste a suposta intolerância do corpo humano à carne. Incide na mesma recaída que ex-“vegetarianos por saúde” que tiveram um generoso contato com, por exemplo, uma dieta mediterrânea – alegadamente muito saudável – rica em carne de peixe ou um mercado que vende carnes mamíferas orgânicas.

Não há, além disso, nada no AB que deixe claro que não é ético consumir produtos animais. Pelo contrário, a ideia que transmite é que o problema do consumo de alimentos de origem violenta, como a carne, é biológico, e não ético-moral.

Se “aprendemos” que o ser humano “é herbívoro e não pode digerir bem carne”, nada concluímos disso sobre por que os animais merecem direitos e como a pecuária e a pesca exploram e destroem incontáveis seres sencientes e devastam a biosfera. E somos induzidos à confusão mental, já que com o AB não conseguimos refletir sobre as raízes históricas multimilenares da exploração animal, nem nos capacitamos a responder convincentemente por que o mesmo ser humano que “não pode” consumir alimentos de origem violenta consome há milênios esses mesmos frutos de exploração animal.

O AB responde à pergunta “Por que não deveríamos consumir alimentos de origem animal?” com a resposta “Porque nosso corpo, biologicamente, não nos permite”, ao invés de “Porque eles vêm da violência de tratar os animais como coisas ou escravos sob propriedade humana”. É inócua, ou mesmo prejudicial, para a ética animal e tenta converter pessoas ao vegetarianismo por meio de um engano que nada tem a ver com os animais e a consciência vegano-abolicionista. Argumentos como esse, portanto, precisam ser problematizados e abandonados, pelo bem da causa animal e da própria seriedade da educação e conscientização vegana.

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