Às vezes podemos encontrar carnistas assumidos, ou que se declaram “ex-vegans”, usando como pretexto para o consumo de alimentos de origem animal um alegado costume de comerem tudo o que “o corpo pede”. Esse argumento, o apelo ao chamadocraving, tenta depor a favor da continuidade da ingestão de produtos como carnes e laticínios, mas no final das contas não justifica a rejeição ao veganismo e o apoio tácito ou assumido à exploração animal.
O fenômeno do craving ocorre quando o indivíduo sente que seu corpo está “pedindo” por um tipo de alimento ou nutriente específico. Por exemplo, alguém tem um cravingpor açúcar quando seu corpo demonstra indícios de desejo por comida doce, como uma vontade quase incontível de comer bolo ou beber refrigerante ou mesmo abstinência explícita.
Isso acontece com algumas pessoas que afirmam ter tentado adotar uma alimentação vegetariana e desistido. Não é difícil achar algum texto ou vídeo no qual um “ex-vegan” ou ex-vegetariano diz que, em sua experiência fracassada, sentia frequentemente desde desejos psicológicos poderosos por carne e/ou laticínios até momentos de angústia, praticamente abstinência psíquica, por “não poder” consumir isso.
Às vezes teorizam que esse “instinto corporal” representaria um alerta de carência de algum nutriente. Acreditam que, por exemplo, se a pessoa sente aquele desejo voraz por queijo ou leite, isso seria indício de carência de cálcio no organismo.
Essas pessoas defendem, baseadas nessa crença, que o ser humano tenha a liberdade de consumir tudo o que “seu corpo pedir”, mesmo que, como no caso dos alimentos de origem animal, a produção do item “desejado” tenha consequências éticas perniciosas. O que argumentam nos leva a entender que não haveria problema em violar a ética e ingerir frutos de exploração animal se o pretexto for “ouvir o corpo” e satisfazer momentos de craving.
Mas alguns defeitos podem ser encontrados nessa argumentação. Essas falhas acabam invalidando essa tentativa de justificar e autorizar eticamente o consumo de produtos animais.
Em primeiro lugar, os relatos que tentam relacionar os rompantes de craving com supostos “pedidos” do corpo por um ou mais nutrientes são sempre falácias de evidência anedótica. Essas histórias não costumam vir apoiadas por exames médicos que confirmem a necessidade da pessoa por aquele(s) alimento(s) específico(s) – ao invés do nutriente supostamente carente, que poderia ser obtido de outras fontes.
Os autores desses depoimentos carnistas não provam confiavelmente que aqueles desejos incontíveis pelos alimentos animais “pedidos pelo corpo” eram devido a necessidades nutricionais verificadas. Nada fora opiniões baseadas em achismo e especulação evidencia que seu “desejo corporal” não era, por exemplo, fruto de costumes alimentares muito fortes – os quais os acostumavam a “não saber viver” sem certas carnes e/ou laticínios.
A alegação de precisar comer o que “o corpo pede” também torna-se duvidosa quando lembramos que o açúcar, a cafeína, a nicotina e outras substâncias não necessariamente saudáveis também provocam craving – seja por certos alimentos ou por drogas. Além disso, segundo Sônia T. Felipe denuncia no livro Galactolatria, mau deleite, alguns laticínios de origem bovina contêm opiáceos, substâncias viciantes que tornam substancialmente difícil, para muitas pessoas, o abandono voluntário desse tipo de alimento.
Uma outra limitação do argumento do craving é que, ao contrário do que carnistas alegam, o que “o corpo pede” é inescapavelmente sujeito a critérios morais. Não é comum, por exemplo, vermos no Brasil consumidores de carne alegando sentir que seus corpos “demandam” a ingestão de carne, sangue ou vísceras de cães, gatos e ratos, independentemente de esses “produtos” serem possivelmente ricos em alguns nutrientes.
E uma igualmente importante característica que coloca em xeque o suposto caráter biológico-nutricional do desejo “irreprimível” por produtos animais é a maneira como muitos dos “ex-vegans” que sofriam isso encaravam seu estilo de vida e alimentação. Em variados relatos desse tipo, aprendemos que eles levavam o veganismo como uma espécie de penitência, uma rotina de sofridos sacrifícios na qual, em nome da ética ou de outra causa, viviam vidas privadas de prazeres culinários.
Evidenciam, em seus relatos, que desconheciam e não se interessavam em conhecer o universo da gastronomia vegana. Uma vez que viviam alheios a essa enorme diversidade de pratos e sabores e contavam com refeições gustativamente pobres, era de se esperar que sentissem saudade, conscientemente ou por meio das sensações do craving, das velhas opções alimentares não veganas.
O apelo ao desejo “do corpo” para defender a perpetuação do consumo de alimentos de origem animal acaba sendo muito mais uma desculpa improvisada do que uma alegação plausivelmente ligada à saúde nutricional. Percebemos que os carnistas que alegam esse motivo para continuar comendo carne e derivados do leite foram conduzidos não por necessidades biológicas exclusivamente atendidas por alimentos animais, mas sim por fator psicológico e ignorância sobre a verdadeira natureza sociocultural e gastronômica do veganismo e vegetarianismo. Esse tipo de desejo não é, e nunca será, uma justificativa válida para se permanecer financiando sem remorso a exploração e morte violenta dos animais ditos “de consumo” e rejeitar o respeito aos Direitos Animais.
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